Out 03, 2022 | Comentários
Exemplos e recomendações para gestores que buscam virar o jogo com a promoção de uma aprendizagem significativa sem sobrecarregar professores e crianças
Sem a mediação do professor especialista durante o período em que as escolas ficaram fechadas, crianças na fase de alfabetização enfrentaram dificuldades ainda maiores. Parte desses problemas foi identificada nos exames do Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica). Desde 2019, é feita uma avaliação de leitura, escrita e matemática para os alunos do 2º ano do ensino fundamental e os resultados de 2021 trazem um alerta: a taxa de estudantes na rede pública com nível de alfabetização insuficiente saltou de 51,4% para 68,6%.
Após a divulgação dos resultados, o Porvir conversou com especialistas em diferentes áreas da educação para entender o que pode ser feito para que a trajetória dessas crianças não seja (ainda mais) prejudicada e como fazer para que aqueles que ficaram para trás retomem o nível de aprendizagem adequado para sua idade o quanto antes.
Papel do gestor de secretaria
Ivan Gontijo, coordenador de políticas educacionais da organização não governamental Todos Pela Educação, afirma que as medidas para melhorar os resultados de aprendizagem neste ponto da vida escolar já são similares àquelas conhecidas por gestores antes da pandemia, e passam pelo incremento do regime de colaboração entre estados e municípios.
“A gente já tinha uma solução para a alfabetização, que é o caso do Ceará, em que o estado apoia os municípios com materiais didáticos, formações continuadas, avaliações e assessoria técnica”, descreve Ivan. Para além dessas iniciativas, ele menciona também incentivos como prêmios para escolas com bom desempenho, o ICMS Educacional (política que destina dez pontos percentuais do que é arrecadado com o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços para cidades que apresentarem melhoria nos resultados educacionais) e o PAIC (Programa Alfabetização na Idade Certa) que, ao longo dos últimos anos, foram adotados por diferentes estados.
Com a pandemia, essa engrenagem veio a travar. A crise trouxe novos problemas a serem enfrentados, como crianças fora da escola e dificuldade em alcançar alunos dessa idade em modalidade remota. “Parece fácil acompanhar o Ceará, mas não é. As regionais de ensino sabem que precisam apoiar os municípios. É uma coisa introjetada na mentalidade do gestor de que o aluno de fato pertence ao território (e não a uma rede específica)”.
Essa parte, admite Ivan, depende de processos e leva tempo. No curto prazo, o coordenador do Todos Pela Educação avalia que é necessário adequar o currículo à realidade. “Por exemplo, um estudante do terceiro ano hoje, de acordo com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), já deveria estar alfabetizado, só que na prática não está. Precisa ter um processo de priorização curricular que defina quais são as habilidades prioritárias para que o professor do terceiro ano não saia aplicando o currículo (novo) com aquela turma. É importante dar o passo para trás”.
Para além dessas recomendações, Ivan ressalta o quão importante é ampliar a carga horária para estudantes com mais dificuldade, assim como de professores que ofereceriam esse atendimento especializado. Ou, melhor ainda: torná-las escolas de tempo integral desde o ensino fundamental, para que possam oferecer oportunidades de aprendizagem qualificadas desde cedo. “O Espírito Santo tem feito algo interessante ao transferir recursos para que municípios invistam em escola de tempo integral. Isso não apenas no ensino médio, como também para aquelas de anos iniciais do fundamental”, disse.
Exemplo no Ceará
Para que você tenha um exemplo do que acontece no Ceará, rede modelo nos bons índices de alfabetização, conversamos com uma gestora escolar que também viveu as dificuldades no ensino das crianças durante o período de distanciamento social, mas que, com o apoio da comunidade escolar e da rede pública, conseguiu minimizar os danos.
Com pouco mais de 6 mil habitantes, o distrito de Jaibaras, localizado no município de Sobral, é destaque quando se fala de bons índices da educação pública. E de boas práticas. A Escola Leonília Gomes Parente, que atualmente abriga 279 alunos da educação infantil e 366 do ensino fundamental 1, não mediu esforços para se manter próxima às famílias durante a pandemia: para as que tinham celular, aulas e atividades a distância foram oferecidas; para os alunos das comunidades interioranas e mais vulneráveis, sem acesso à internet, professores se revezavam na visita semanal para a entrega e retirada das tarefas. Cestas básicas também eram oferecidas quinzenalmente a quem mais precisava.
O acolhimento se refletiu no aprendizado. “Nós nos surpreendemos no retorno ao presencial, com 40% dos alunos bem encaminhados na alfabetização, lendo textos sem fluência. Foram poucos os que retornaram com caraterísticas de não leitor”, conta Cristiane Ribeiro, diretora da escola. “Mesmo assim, não chegamos à totalidade da alfabetização da turma presencial”, pondera. A escola registra um dos índices mais altos no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) de todo o Brasil: 9,7 de 10. Inclusive, o município de Sobral conta com nove escolas públicas na lista das cem melhores do país no que se refere ao Ideb; a Leonília Gomes Parente é a de nota mais alta.
Durante 11 anos, Cristiane atuou como coordenadora pedagógica da escola, e assumiu a direção um mês antes de a pandemia fechar suas portas. Por já conhecer bem a comunidade e estar sempre pronta para recebê-la, conseguiu, ao lado da equipe, pensar em alternativas para que os estudantes sofressem menos com a distância dos colegas e dos professores.
“Temos desde alunos com pais analfabetos até aqueles que, durante a pandemia, puderam contratar reforço particular para seus filhos. Nós nos esforçamos para atender a todos, principalmente as 96 famílias que moram no interior e não tinham qualquer acesso à internet. Nossos professores iam até as casas desses alunos, uma vez por semana, e, com os devidos cuidados de distância e higienização, conversavam com os familiares e apoiavam os estudantes nas tarefas, bem como ofereciam suporte emocional. Não foi um período fácil”, comenta a diretora. A escola contou com a parceria do Instituto Ayrton Senna para trabalhar aspectos socioemocionais com as famílias.
Durante os dois anos distantes da escola, mesmo com as atividades a distância, a pergunta mais ouvida por Cristiane e a equipe escolar, vinda principalmente das crianças mais carentes, era: “Tia, quando isso vai acabar? Quando vamos voltar para a escola?”. “Sabemos que a escola era o único órgão de apoio com o qual essas famílias podiam contar. Muitos pais perderam seus empregos, e a escola era o abrigo em muitos sentidos, inclusive socialmente. Aqui, as crianças contavam com lanches bem-preparados um cardápio nutricional, e de repente ficaram isoladas. Oferecer apoio foi fundamental”, diz Cristiane.
Em junho deste ano, por meio de um diagnóstico interno, a escola identificou que todas as crianças do segundo ano já são leitoras, com 87% de aproveitamento em português. “Iniciamos o ano letivo com dificuldades vindas da pandemia, mas conseguimos evoluir pelo acompanhamento individual, adequação de rotina, diagnósticos internos e externos, planejando conteúdos e focando nas habilidades desenvolvidas por cada estudante”, explica Cristine.
Atualmente, justamente como disse Ivan logo acima, a escola está focada no atendimento qualificado e individual para as turmas de alfabetização, a fim de recuperar a aprendizagem. “Dividimos as turmas por níveis, com professores alocados por níveis para trabalhar as habilidades dos não leitores, leitores de sílabas e leitores de palavras”, exemplifica.
Outro ponto destacado pela diretora é o projeto Tempo de Aprender, do MEC (Ministério da Educação) em parceria com as secretarias de educação. A escola conta com um assistente para acompanhar de perto as oito turmas de alfabetização, participando do planejamento semanal e da formação continuada dos professores.
Atividades ricas
Para, Silvia Gasparian Colello, professora da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo) e autora do livro “Alfabetização – O Quê, Por Quê e Como” (Editora Summus, 216 páginas), a pandemia agravou problemas e riscos que já eram visíveis nos anos iniciais do fundamental. Agora, segundo ela, ficou ainda mais clara a importância da escola não só como instituição de ensino, mas como ambiente para despertar o interesse pela aprendizagem, pelo conhecimento, promover a socialização e garantir a segurança das crianças.
Diante do esperado declínio nos índices de aprendizagem como o apontado no Saeb, a especialista da USP se diz contra o uso da expressão “recuperação de aprendizagem”. Segundo ela, a palavra recuperação incide e culpabiliza o sujeito, a criança, por não ter aprendido durante o período de aprendizagem remota ou mesmo quando as aulas voltaram ao modo presencial de forma intermitente. “A culpa não é da criança. (A questão é que) realmente não havia condições do ensino chegar até ela. E a palavra recuperação também diz respeito ao tempo. É inadequada porque tempo é uma coisa que não se recupera. Isso tem consequências práticas, porque algumas propostas falam em diminuir as férias, estudar aos sábados. Você vai sobrecarregar a criança e colocar uma pressão que não é justa”.
Para Silvia, a avaliação de provas de larga escala sem levar em conta o contexto atual também pressiona professores. “É por isso que eu acho que a palavra-chave não pode ser recuperação, e sim retomada”, afirma. “Precisamos fazer uma avaliação que dê conta que cada escola é uma escola, cada turma é uma turma e cada aluno é um aluno. E não é só por meio de uma provinha. Algumas até são legítimas, mas o professor precisa sentir o dia a dia desse aluno para que ele possa fazer essa retomada”.
Aqui, Silvia reitera a posição de Ivan, do Todos Pela Educação, e sugere pensar de forma personalizada, de acordo com as dificuldades locais. “Nos planejamentos, a gente não pode mais pensar no que é previsto para o terceiro ano e que é previsto para o segundo ano. Precisa pensar o que é previsto para aquela turma e pensar essa retomada não só do ponto de vista da aprendizagem, mas da socialização e da afetividade”.
Recomendações de atividades
E quais seriam atividades ricas para este momento e para o próximo ano letivo? “Em primeiro lugar, investir na interação entre professor e aluno e entre alunos, isso é muito rico. Isso era uma esse era um desafio que já estava posto antes mesmo da pandemia, porque o professor normalmente ele tem uma representação mental de um professor que dá aula para uma porção de alunos sentadinhos em fileira e voltados para o professor. A necessidade de romper com essa configuração tradicional da sala de aula, já estava posta antes da pandemia e hoje eu acho que isso é mais do que necessário.
E por que fazer isso na fase de alfabetização? A mensagem está na promoção da interação a partir da descentralização da sala de aula. “Quando o professor quebra com essa lógica, em primeiro lugar, tem a possibilidade de distribuir tarefas para os grupos, duplas ou trios, e atender crianças que precisam de atenção mais específica”, diz Silvia, lembrando ainda que as próprias crianças podem ajudar umas as outras.
Em segundo lugar, Silvia recomenda o fortalecimento de práticas apoiadas em projetos e pesquisa de temas como a poluição de rios ou mesmo questões sociais. “A partir da pesquisa, da produção textual e da apresentação de seminários, os alunos tendem a se sentirem felizes e engajados na problemática da sua vida. Isso seria basicamente como romper com a com a redoma que existe entre a escola”. De novo, aqui Silvia reitera o quanto esses fatos já estavam postos antes de 2020 e que agora são ainda mais evidentes.
A retomada depende de um envolvimento maior da criança com o que está sendo ensinado. Ao promover apresentações diárias sobre o que foi aprendido, também é possível desenvolver a oralidade e a escrita a partir de um livro coletivo de casos pessoais. “Quando a criança se sente autora, acaba se envolvendo mais. Então, trabalhar com projetos que as desafiem a ler e escrever e que funcionem a partir de resolução de problemas permite com que elas sejam capazes de perceber, por exemplo, o problema da poluição”. Algo muito mais robusto que uma prova, não?
Fonte: Portal Porvir - Vinícius de Oliveira / Ana Luísa D'Maschio