Set 05, 2022 | Comentários
Pela criticidade do momento no qual vivemos, estamos perseguindo a urgência da recomposição das aprendizagens, mas sem um olhar mais sistêmico para a justiça pedagógica.
A pandemia de Covid-19 teve impactos na educação que evidenciaram bruscamente vários obstáculos para se ter um ensino de qualidade no Brasil. Recentemente, as perdas de aprendizagem ocorridas e a respectiva necessidade de recompor essas aprendizagens aparecem como o desafio mais urgente.
Continuamos, porém, com uma tendência a tratar estas adversidades de maneira relativa, negligenciando parcialmente o que está previsto na Constituição: devemos ser capazes de oferecer uma educação de qualidade para todos. Devemos continuar perseguindo uma justiça pedagógica onde todos envolvidos na oferta de aprendizagem para nossas crianças e jovens estejam devidamente considerados e habilitados para oferecer, ainda mais no contexto atual, aprendizagem para todos.
Pela criticidade do momento no qual vivemos, estamos perseguindo a urgência da recomposição das aprendizagens, mas sem um olhar mais sistêmico para a justiça pedagógica. Neste esforço “pós-pandêmico” de recompor as aprendizagens, é fundamental perseguirmos com coerência esta orientação constitucional, mas com uma perspectiva mais integral para a oferta da educação.
Não basta avaliarmos e priorizarmos as expectativas de aprendizagem, flexibilizarmos e adequarmos os currículos, introduzirmos práticas de cuidado e acolhimento para professores e alunos e cuidarmos da saúde mental se não considerarmos as diferenças e particularidades individuais – não somente dos alunos, mas também dos docentes e gestores escolares. A carência de justiça pedagógica se apresenta de forma sutil, mas crítica para professores e gestores na medida que se persegue uma recomposição das aprendizagens sem endereçar a necessidade da diferenciação de ensino.
Pela criticidade do momento no qual vivemos, estamos perseguindo a urgência da recomposição das aprendizagens, mas sem um olhar mais sistêmico para a justiça pedagógica.
A diferenciação de ensino já era uma necessidade apontada antes da pandemia: para que todos os alunos tenham chance de atingir os objetivos de aprendizagem, os professores devem ser capazes de identificar a diversidade de interesses, aptidões e perfis em sala de aula e utilizar diversas estratégias didáticas conforme os diferentes “grupos” que ele concebeu e orientou. Entretanto, a pandemia agravou estas diferenças e, sem a habilidade para a diferenciação de ensino, tornou a tarefa docente ainda mais complexa.
A situação atual é especialmente desafiadora para professores e gestores: percebem e explicitam a defasagem de aprendizagem, estão sendo desafiados a desempenhar atividades de recomposição de aprendizagens em situações para as quais não tiveram formação prévia, além de estarem também com desafios relacionados à saúde mental e estabilidade emocional por conta da pandemia. Mais do que uma formação em diferenciação de ensino, se faz necessário uma abordagem que olhe para as especificidades dos professores e se considere que a diferenciação de ensino deve se iniciar por abordagens que considerem a diversidade dos professores.
Uma pesquisa recém-publicada pelo Instituto Península evidencia uma triste realidade do contexto atual: só um em cada dez professores acredita que os alunos aprenderão o que estava previsto neste ano. O levantamento foi realizado no primeiro semestre com professores de escolas públicas e particulares de todo o país e aponta um quadro alarmante, principalmente agravado pelo longo tempo de escolas fechadas que tivemos por conta da pandemia, mas também por problemas de saúde mental e relacionamento entre os estudantes, muito provavelmente associados ao isolamento social e suas decorrências.
Se por um lado já se conhece os impactos negativos causados pela pandemia, por outro lado já são conhecidos possíveis rumos para minimizá-los. Antes mesmo da abertura geral das escolas brasileiras, em setembro de 2020, já antecipávamos alguns impactos e caminhos de transformação para novos contextos curriculares.
Ainda em 2020, iniciou-se o questionamento sobre a percepção dos educadores em relação à porcentagem dos alunos que aprenderiam o que era previsto. Nota-se que esta percepção foi piorando: a pergunta foi feita em 2020, 2021 e em 2022 e os percentuais de professores que acreditava que os alunos aprenderiam o esperado foi reduzindo de 26%, para 14% até chegar aos 11% da mais recente pesquisa.
Não se tem valores desta percepção para períodos anteriores à pandemia. Mas é fato, que anteriormente a 2020, os professores tinham contato presencial com seus alunos como regra, e não exceção, e pouco se falava de recomposição de aprendizagem, mas de recuperação e reforço escolar. Apesar da diferença entre os termos que já foi tratada aqui, todas as três evidenciam que a aprendizagem de alunos de uma mesma classe não ocorre de maneira uniforme e são necessários esforços adicionais para proporcionar aprendizagem para todos.
Um aspecto crítico que muitas vezes passa despercebido pela maioria é que todos estes esforços de proporcionar aprendizagem para todos são posteriores à constatação da falta de aprendizagem. Ocorrem atividades prévias de ensino com intencionalidade de aprendizagem e, ao se constatar que não foi possível prover aprendizagem para todos, direciona-se algum tipo de “re-ensino”. Sempre com o prefixo “re”, porque não fomos capazes de dar conta das diferenças na primeira tentativa.
Isso se torna ainda mais crítico quando voltamos a analisar o momento atual, além das causas indicadas para a baixa expectativa de aprendizagem, convém destacar as estratégias que os professores acreditam ser efetivas para recuperar a motivação e prover aprendizagem para os alunos.
A pesquisa recém realizada indica que 60% dos professores acreditam que a estratégia mais efetiva para aumentar a motivação e aprendizagem dos alunos é um maior envolvimento das famílias e da comunidade escolar. Seguido de 45% que apostam na aplicabilidade de metodologias ativas de aprendizagem, 45% também endossam a necessidade de aulas de reforço escolar.
De modo ainda mais crítico, observa-se que as causas relacionadas à família e ao reforço não estão nem relacionadas à atividade de ensino propriamente dita.
Não se percebe, de maneira explícita, que as estratégias listadas pelos professores nas pesquisas consideram as diferenças naturais de perfis e habilidades de aprendizagem existentes entre os diversos alunos, mesmo antes do ensino. De modo ainda mais crítico, observa-se que as causas relacionadas à família e ao reforço não estão nem relacionadas à atividade de ensino propriamente dita. Não se fala de maneira estruturada de desenvolvimento docente em diferenciação de ensino na pesquisa e fora dela.
Pela minha experiência e observação em projetos e estudos na área de educação, os esforços atuais de sistematização de materiais e formações disponibilizados em redes particulares e públicas de ensino estão principalmente focados em alguns aspectos: recomposição com foco em rearranjos dos conteúdos e atividades docentes, um cuidado com saúde mental e acolhimento de alunos e docentes, mas nenhuma formação estruturada para os professores com foco em um fazer pedagógico diferente que considere especificidades tanto de alunos quanto de docentes para propiciar diferentes abordagens de ensino para uma aprendizagem para todos.
A justiça pedagógica tão necessária nestes tempos já vem sendo endereçada de alguma forma pelos esforços atuais. Observa-se que estes esforços dão conta de propiciar um rearranjo de expectativas de aprendizagem, tão necessárias e urgentes. Além disso, observa-se um cuidado com o ser humano, observando-se aspectos de estabilidade emocional e saúde mental que são essenciais para que se considere justa esta transformação pela qual a escola, os educadores e principalmente os alunos estão sendo obrigados a passar. Entretanto, a justiça pedagógica ainda demanda aspectos específicos de desenvolvimento profissional docente para que seja possível, com a urgência necessária, prover aprendizagem para todos.
Se faz necessária uma intencionalidade pedagógica que reconheça o professor nas suas individualidades. Para propiciar aprendizagem para todos, os professores devem percorrer um ciclo de conscientização, planejamento e mediação que considere as suas particularidades e possibilite seu autodesenvolvimento na direção de uma mediação docente diferenciada. O real valor do professor se dá na habilidade de mediar a aprendizagem: cada vez mais o conteúdo estará disponível e organizado, cabe ao professor ser o agente que irá trazer significado para os conteúdos, conforme as suas próprias especificidades, considerando a diversidade dos alunos.
Além disso é urgente o desenvolvimento docente no sentido de um “saber fazer pedagógico” que, independentemente da disponibilidade de tecnologia digital (pois sabemos que ainda existem deficiências quanto a isso na educação brasileira), considere diferentes abordagens de ensino para diferentes grupos de alunos.
Por fim, nenhum dos dois aspectos anteriores é viável se não tivermos gestores que percebam que todo e qualquer esforço de transformação necessário na Educação passa pelo desenvolvimento pessoal e profissional de gestores que consigam dialogar sobre, entender e endereçar as diferenças existentes nas suas escolas, nas suas comunidades escolares, no corpo docente e principalmente nas crianças e jovens.
Apesar da criticidade da situação, existe luz no fim do túnel: os esforços atuais que estão chegando às escolas já endereçam parte do conjunto da justiça pedagógica, conforme comentamos acima, e começam a surgir pesquisas sobre práticas e programas de formação que complementam a oferta de justiça pedagógica que os tempos atuais tanto clamam.
Resta conseguirmos dar celeridade a este processo de desenvolvimento sem prejudicar a essência e a coerência tão necessárias para que consigamos uma justiça pedagógica para propiciar aprendizagem para todos.
Para saber mais:
Aprendizagem para Todos – programas de extensão:
https://bit.ly/Cursos_AprendizagemparaTodos
Mediação Docente Diferenciada – tese em Educação:
https://bit.ly/Tese_MediacaoDocenteDiferenciada
George R. Stein - Diretor da Geostein Engenharia de Aprendizagem. Professor e consultor em Mediação Docente Diferenciada / Aprendizagem para todos, Inovação para Aprendizagem, Inovação Social e Gestão. Autor, palestrante e mentor Internacional, associado na Reos Partners e Conselheiro na Labor Educacional. Doutor em educação: Currículo (PUC-SP), Engenheiro de Produção (Escola Politécnica), Especialista em Diferenciação de Ensino (Harvard Graduate School of Education), Gestão de Mudança e Inovação Social (MIT – Presencing Institute)
Fonte: Portal Porvir - George R. Stein