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Educação Musical: utopia ou realidade?

Ago 06, 2015 | Comentários

COMO O PIANO EM GRUPO PODE SE TORNAR UMA FERRAMENTA PARA CONCRETIZAR A EDUCAÇÃO MUSICAL DE QUALIDADE NO SISTEMA EDUCACIONAL BRASILEIRO.



O tema educação musical tem chamado muita atenção na atualidade daqueles que atuam na educação básica, tanto de educadores, quanto dos gestores das instituições de ensino. E isso tem ocorrido principalmente como resultado dos estudos da neurociência na última década que comprovam que a música é uma poderosa ferramenta para o alcance do potencial máximo de criatividade e do desenvolvimento intelectual e social dos alunos na educação básica.

Um dos demonstrativos da atualidade do tema é que, recentemente, a educação musical voltou a ser objeto de destaque no meio acadêmico brasileiro, gerando grandes discussões a respeito de seu conceito, conteúdo, abrangência, formatação e importância, além de outros aspectos. Isso se deu de modo crescente nos últimos anos, fundamentalmente, por conta da promulgação da Lei 11.769/2008, que acrescentou o §6o ao artigo 26, da Lei 9394/96 (LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), determinando que a música passasse a ser conteúdo obrigatório no ensino de arte na educação básica (remetendo ao §2o). Tal previsão genérica é, de certa forma, um reconhecimento por parte da estrutura sócio-política do país da importância da formação musical na educação básica. A lei, porém, não faz qualquer referência ao modo e meios de implementação.

Embora o reconhecimento da importância seja quase unânime, a realidade prática de aplicação da educação musical apresenta grandes desafios. A grande questão da educação musical, na atualidade, é a falta de um método consistente e bem elaborado e de treinamento adequado aos professores e profissionais que atuam na área. 

Os recentes congressos da ABEM (Associação Brasileira de Educação Musical) apresentam principalmente propostas de criação de materiais lúdicos, com o objetivo de imediata inserção da música nas escolas, considerando-se a realidade sistêmica atual da educação básica. Isso pode ser notado a partir da análise dos volumes da revista Música na Educação Básica publicada pela ABEM dos anos de 2009, 2010, 2011 e 2012 (não foram feitas publicações posteriores).  Pode-se constatar que os artigos ali presentes visam fornecer orientações e exemplos de atividades direcionadas aos educadores musicais que já atuam na educação básica. Nota-se uma inclinação para o fornecimento de alternativas lúdicas em forma de brincadeiras que visam uma vivência no campo da música. Embora se possa verificar que tais sugestões fazem uso de grande criatividade para que haja interação das crianças e utilização dos recursos por vezes escassos, não há propriamente propostas que busquem ensinar um aluno a ter uma experiência real através da música podendo tocar instrumentos, ler partituras e até possuir um nível básico em música.

Podem ser considerados dois aspectos do universo da educação musical: 1) a vivência musical através de atividades lúdicas, brincadeiras, jogos e etc e 2) o efetivo aprendizado da linguagem musical através de um instrumento ou do canto. Nota-se que o pensamento do meio acadêmico brasileiro, extraído dos artigos da revista da ABEM, demonstra a tendência de considerar simplesmente que não é possível a concretização do segundo aspecto, ou seja, do efetivo aprendizado da linguagem musical na escola. Portanto, parte-se do princípio que uma Educação Musical de qualidade no Brasil é utopia. 

Daí decorre uma busca constante de soluções e alternativas, apresentado-se o ensino da música apenas através de atividades lúdicas, rodas, danças, cantigas e brincadeiras, buscando-se "fazer música de forma fácil" para uma criança. Tal preocupação não há, por exemplo, com o ensino da matemática ou do português. Isso porque, embora haja o emprego de atividades lúdicas também no ensino destas matérias, não se questiona a necessidade de aprendizado das quatro operações ou de domínio das faculdades de ler e escrever.  

A concentração dos esforços no segundo aspecto, o de efetivo aprendizado da linguagem musical, não implica exclusão da vivência da música como atividade lúdica, já que o estudo propriamente dito de um instrumento proporcionará naturalmente tal vivência. Por outro lado, a concentração nas atividades lúdicas não traz automaticamente o aprendizado da linguagem musical. 

O provável motivo gerador da inserção da música como matéria curricular obrigatória, e por que não dizer da própria existência da Educação Musical como um todo, é a ocorrência de benefícios que são gerados às crianças através de uma educação musical de qualidade, com experiência real no mundo da música. Inúmeros estudos da neurociência comprovam tais benefícios no campo do desenvolvimento do raciocínio, da percepção sensorial e da coordenação motora, bem como no aumento da memória operacional, da criatividade e do QI. Tais estudos demonstram que esses benefícios ocorrem com o aprendizado da linguagem musical através do estudo do piano, canto, violino e etc. e não com alternativas, brincadeiras, vivências, jogos e etc. 

Sendo assim, se faz necessário desenvolver um conceito de Educação Musical que não desconsidere a realidade brasileira, mas que busque elementos de efetiva aprendizagem da linguagem musical através da utilização de metodologia eficiente. A primeira mudança que deve ocorrer, portanto, é no campo ideológico, ou seja, é preciso partir de um novo paradigma, no qual se acredite na possibilidade real de criação de um sistema de Educação Musical eficiente e viável para o sistema educacional brasileiro que abranja o aprendizado da linguagem musical. 

Através da escolha de ferramentas simples, é possível a criação de uma metodologia que atenda a tais características. Uma primeira providência, óbvia, é a institucionalização da importância da Educação Musical, ou seja, sua inserção na grade curricular da educação básica, como uma disciplina autônoma. Tal ponto é fundamental para que haja espaço para criação de uma base curricular que seja transmitida de forma consistente.

O próximo passo envolve a escolha de um instrumento inicial que seja o mais completo possível para fornecer as competências musicais básicas - harmônico, melódico e rítmico. Neste ponto, o piano apresenta-se como uma escolha natural, uma vez que é inclusive base para todos os outros instrumentos: bacharéis nos outros instrumentos devem necessariamente cursar piano complementar na universidade. 

No início do século XX, nos Estados Unidos, aulas de piano em grupo tornaram-se obrigatórias no sistema educacional.  O educador musical Calvin Breinerd Cady (1852-1928) foi um dos principais incentivadores da inclusão do piano em grupo nas escolas públicas americanas e, em 1889, a secretaria de educação daquele país oficializou o ensino do piano em grupo como um método desejável do sistema educacional. No início da década de 30, já existiam 873 municípios nos Estados Unidos nos quais o piano em grupo era oferecido como disciplina curricular nas escolas públicas. Devido à imensa demanda, mais de 150 universidades ofereciam cursos para formação de professores de piano em grupo. 

A utilização do piano em grupo no sistema de Educação Musical foi, assim, testado por décadas. Tal sistema foi bem sucedido por período significativo (mais de meio século), mesmo com a utilização de pianos-mudo. 

Com as novas tecnologias, a implantação da Educação Musical através do piano em grupo encontra uma maior facilidade ainda. Atualmente, o teclado digital possui inúmeros recursos tecnológicos. Além de ser bastante acessível, contém uma infinidade de recursos, como, por exemplo, a utilização de diferentes timbres, que podem simular uma orquestra. Também é possível acoplar um fone de ouvido para o treino individual de cada aluno, realizar gravações individuais e fazer a interação com plataformas digitais, tais como smartphones, tablets e computadores. 

Com isso, a introdução posterior de outros instrumentos fica bem facilitada, sendo possível a implementação gradual de bandas e orquestras sinfônicas.

Claro que a elaboração de uma base curricular consistente a partir destas premissas não é algo fácil de ser desenvolvido, e requer que a Educação Musical seja objeto de ampla, contínua e crescente pesquisa acadêmica, mas é um norte que deve ser perseguido como o único desejável. Isso para que a Educação Musical conquiste definitivamente a importância devida no sistema educacional e seja considerada como um direito das crianças, e saia do status de utopia para se tornar uma realidade.

Por Dr. Rogério Tutti

Rogério Tutti é um pianista, compositor e regente, com grande destaque nacional e internacional. Como pianista solista tem se apresentado nas principais salas do mundo e com algumas das mais prestigiadas orquestras e regentes em pai?ses como EUA, Ita?lia, Portugal, Franc?a, Ru?ssia, Argentina e Chile. Possui graduate diploma pelo New England Conservatory, Mestrado em piano performance pela University of North Dakota e Doutorado em Pedagogia do Piano pela Universidade de São Paulo. Em 2010, desenvolveu metodologia para os professores de ensino de piano em grupo do Projeto Guri, considerado o maior projeto social de música do país. Em 2014, lançou o Sistema Tutti de Educação Musical, método de educação musical para ser implementado nas escolas do ensino fundamental. Em 2015, lançou o livro "Pedagogia do Piano em Grupo" pela editora Prismas.

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