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Escolas sem fins lucrativos e a Fiscalização Tributária: lições que aprendemos com a leitura da obra a “A Mulher que Matou os Peixes” de Clarice Lispector

Nov 04, 2021 | Comentários

“(...) Bem, agora chegou a hora de falar sobre o meu crime: matei dois peixinhos. Juro que não foi de propósito. Juro que não foi muito culpa minha. Se fosse, eu dizia.

Meu filho foi viajar por um mês e mandou-me tomar conta de dois peixinhos vermelhos dentro do aquário.

Mas era tempo demais para deixarem os peixes comigo. Não é que eu não seja de confiança. Mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo histórias para gente grande.

E assim como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quando vão ver já se queimou toda a comida – eu estava também ocupada escrevendo história. E simplesmente fiz uma coisa parecida com deixar a comida queimar no fogo: esqueci três dias de dar comida aos peixes! Logo aqueles que eram tão comilões, coitados.

Além de dar comida, eu devia sempre trocar a água do aquário, para eles nadarem em água limpa. E a comida não era qualquer uma: era comprada em lojas especiais. A comida parecia um pozinho horrível, mas devia ser gostoso para peixe porque eles comiam tudo.

Devem ter passado fome, igual gente. Mas nós falamos e reclamamos, o cachorro late, o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas peixe é tão mudo como uma árvore e não tinha voz para reclamar e me chamar. E, quando fui ver, estavam parados, magros, vermelhinhos – e infelizmente já mortos de fome.

Vocês ficaram muito zangados comigo porque eu fiz isso? Então me deem perdão. Eu também fiquei muito zangada com a minha distração. Mas era tarde demais para eu lamentar.

Eu peço muito que vocês me desculpem. De agora em diante nunca mais ficarei distraída.

Vocês me perdoam? (1)

Como Advogada, Professora, filha e irmã de Professores sou leitora e escritora compulsiva, hábitos estes que me acompanham desde a infância. Digo isto, na largada deste singelo artigo, porque gosto de tudo que cria empatia e sinergia com o leitor, porque também me encaixo nesta categoria. 

Leio de tudo: desde os textos dos meus sobrinhos que, ainda crianças, estão na fase de desbravar nosso vernáculo, até Michel Foucault (2) que particularmente adoro e citei em alguns artigos publicados na Revista da Escola Particular do SIEEESP.

Neste contexto, ainda nos tempos de escola, há décadas, li uma obra que nunca saiu da minha mente: A mulher que matou os peixes de Clarice Lispector. Naquele momento a narrativa parecia ser tão realista e inteligível, assim como hoje ainda é, que trago comigo, para a vida, lição aprendida quando da leitura da supracitada obra: sendo peixes ou não, se não temos zelo com tudo o que nos cerca, ou seja, com o coletivo que compõe nossas vidas (enquanto conjunto mutante de pessoas, trabalho, família, laços pessoais, plantas, animais, etc.) estaremos fadados aos incontroláveis dissabores desta vida terrena. 

E isto vale para as Fiscalizações Tributárias, mas, por quê?

A experiência revela que, não raro, Intimações e Notificações oriundas de Fiscalizações Tributárias provenientes de qualquer esfera de governo (Federal, Estadual ou Municipal) são esquecidas e pior, muitas vezes, negligenciadas e esquecidas à própria sorte em pastas de lixo eletrônico ou, ainda, em tristes gavetas vazias, sempre sob a mesma justificativa: as pessoas estão assoberbadas com outras tarefas corporativas o que faz com que a Fiscalização faleça, quase sempre, com final infeliz. Qualquer semelhança da contemporânea realidade das entidades sem fins lucrativos com o final da obra de Clarice Lispector, será mera coincidência.

Ocorre que lá, no saudoso livro, os peixes não ressuscitam, sucumbem em movimento sem volta. Noutro giro aqui, na esfera da Fiscalização Tributária, os “peixes” tornam a viver, mas com muito mais intensidade e com outra roupagem: de Autos de Infração com principal, juros e multa no que concerne à obrigação principal (pagamento do tributo), de Autos de Infração atinentes as obrigações acessórias (Notas Fiscais, entrega de Declarações, etc.), bem como de Autos de Infração com a aplicação de multas por embaraço à Fiscalização em razão da não entrega da totalidade dos documentos solicitados. Isso porque o credito tributário é um ser vivo em constante metamorfose dentro dos 5 anos, contados do fato gerador, passíveis de cobrança pelo Fisco.

Para melhor contextualização, analogicamente:

1) Trecho do Livro: “(...) Bem, agora chegou a hora de falar sobre o meu crime: matei dois peixinhos. Juro que não foi de propósito. Juro que não foi muito culpa minha. Se fosse, eu dizia.

Meu filho foi viajar por um mês e mandou-me tomar conta de dois peixinhos vermelhos dentro do aquário.

Mas era tempo demais para deixarem os peixes comigo. Não é que eu não seja de confiança. Mas é que sou muito ocupada, porque também escrevo histórias para gente grande.” 

Aqui, apesar de não se tratar de crime, o fato de sepultar a Fiscalização sem tê-la atendido a tempo e modo sob a alegação de estar muito ocupado com outras atividades é, no mínimo, inadmissível. Porque isto, fatalmente, gerará passivo tributário para a instituição. Costumo dizer que toda Fiscalização deve ter um owner, ou seja, “dono” dentro da instituição que, caso não consiga atendê-la, deverá delegar a tarefa para outro colaborador que detenha expertise nesta área. 

2) Trecho do Livro: “E assim como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quando vão ver já se queimou toda a comida – eu estava também ocupada escrevendo história. E simplesmente fiz uma coisa parecida com deixar a comida queimar no fogo: esqueci três dias de dar comida aos peixes! Logo aqueles que eram tão comilões, coitados.

Além de dar comida, eu devia sempre trocar a água do aquário, para eles nadarem em água limpa. E a comida não era qualquer uma: era comprada em lojas especiais. A comida parecia um pozinho horrível, mas devia ser gostoso para peixe porque eles comiam tudo.”

A Fiscalização Tributária é de uma voracidade ímpar e não aceita “qualquer comida”. Assim como os falecidos peixes de Clarice Lispector, aqui também há exigências quanto ao “alimento”, neste particular considerado como os documentos solicitados, pelo Fisco, e que deverão ser entregues à Fiscalização: se o auditor solicitou em formato PDF com OCR ou em Excel, assim deverá ser; se o Auditor solicitou a entrega por e-mail, assim deverá ser; se o Auditor solicitou todos os documentos assinados pelo Presidente da Instituição, assim deverá ser. Vale dizer: o contribuinte não tem margem de escolha. As solicitações oriundas do Fisco são taxativas e não meramente exemplificativas. Ademais, o processo de atendimento à Fiscalização Tributária é extremamente estratégico e não simplesmente a entrega de um amontoado de arquivos em PDF. Aliás, este equivocado paradigma, que mais parece uma maldição no meio tributário, deve ser quebrada! Neste ponto, desvio do campo da literatura infantil para uma breve digressão no campo do audiovisual com o filme “O Feitiço de Áquila” (1985): sim, o feitiço se desfez!

3) Trecho do Livro: “Devem ter passado fome, igual gente. Mas nós falamos e reclamamos, o cachorro late, o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas peixe é tão mudo como uma árvore e não tinha voz para reclamar e me chamar. E, quando fui ver, estavam parados, magros, vermelhinhos – e infelizmente já mortos de fome.

Se o Contribuinte não entrega todos os documentos solicitados ao Fisco, a tempo e modo, a Fiscalização “passa fome e morre de fome”, assim como os peixes de Clarice Lispector. Assim como os peixes, ela não reclamará por isto, mas, por outro lado, o Fisco penalizará o contribuinte por isto.

4) Trecho do Livro: “Vocês ficaram muito zangados comigo porque eu fiz isso? Então me deem perdão. Eu também fiquei muito zangada com a minha distração. Mas era tarde demais para eu lamentar. Eu peço muito que vocês me desculpem. De agora em diante nunca mais ficarei distraída. Vocês me perdoam?

Lamentar por não ter feito o que deveria ser feito, sob qualquer pretexto, não resolve a questão. O que resolve é agir preventivamente e nutrir a Fiscalização, com estratégia, para que seja encerrada sem a lavratura de Autos de Infração. Se houver erro de percurso, está na hora de rever processos internos e de mudar de rota, até porque a zona de conforto não é, e nunca será, terreno fértil em qualquer segmento da vida.

Superada esta breve analogia como, então, as instituições escolares sem fins lucrativos, que estão albergadas pelo manto da imunidade prevista no artigo 150, inciso VI, alínea “c” da Constituição Federal, deverão agir em termos de Compliance Tributário, especialmente no que concerne às fiscalizações?

1) Atender a Fiscalização a tempo e modo, acompanhada de Procuração, Ata de Eleição da Diretoria vigente e de cópia dos documentos pessoais do atual Presidente e do Procurador. Eventuais pedidos de dilação de prazo deverão ser justificados e solicitados por escrito;

2) Entregar todos os documentos solicitados pelo Auditor Fiscal, a fim de evitar a lavratura de Auto de Infração com multa por embaraço à Fiscalização (3);

3) Cumprir, rigorosamente, o artigo 14 do Código Tributário Nacional ou seja: não distribuir qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; aplicar integralmente, no Brasil, seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais e manter escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão (ITG 2002);

4) Entregar suas Obrigações Acessórias a tempo e modo;

5)    O atendimento à Fiscalização Tributária é processo multidisciplinar e estratégico, uma vez que envolve diversas áreas da instituição (como Departamento Jurídico com Petições, Declarações, Relatório sobre a Diretoria Estatutária, Relatório sobre os imóveis utilizados pela Instituição próprios ou alugados, Contratos com prestadores e fornecedores de serviços, CEBAS e demais Certificados; Contabilidade com Demonstrações Contábeis e Obrigações Acessórias; Área Fiscal com notas fiscais e serviços tomados, Departamento Pessoal com a RAIS e eventual remuneração de dirigentes e Outras áreas como, por exemplo, aquelas que confeccionam os Relatórios de Atividades) e que depende de Controles Internos eficientes sobre todas as operações, mas, especialmente no que diz respeito às despesas e reembolsos. Portanto, é salutar a criação de processo interno para as fiscalizações, com a eleição de um “dono para o processo” e a aplicação, por exemplo, da metodologia do 5W2H (O que deve ser feito? Por que precisa ser realizado? Quem deve fazer? Onde será implementado? Quando deverá ser feito? Como será conduzido? Quanto custará esta operação?

6) Toda e qualquer operação deve ter lastro documental a fim de dar sustentação ao tripé: Contrato “x” Nota Fiscal “x” Contabilidade;

7) Em caso de remuneração de Dirigentes Estatutários seguir, fielmente, o disposto nos artigos 12, parágrafos 2º “a”, 4º e 5º, da Lei Federal nº 9.532/97 (que é legislação tributária), sem prejuízo do cumprimento da legislação específica como, por exemplo, da remuneração de dirigentes de instituições que têm CEBAS e

8) Atentar para o fato de que a Fiscalização Tributária deverá respeitar a verdade material.  Por meio do Princípio da Verdade Material, o Agente Público deve buscar a verdade, ou seja, deve cercar-se de todos os dados, informações, documentos a respeito da matéria tratada, diligenciando de modo a exaurir as informações e provas inerentes ao caso concreto, sendo certo que, caso isto não ocorra, haverá possibilidade do contribuinte encontrar-se em situação vulnerável.


Pois bem. O que, então, desencadeia uma Fiscalização Tributária? Fiscalizações, geralmente, são iniciadas aleatoriamente, salvo quando os alvos são nichos específicos de mercado ou quando há, por exemplo, a entrega de obrigação acessória de forma equivocada e que, portanto, salta aos olhos do Fisco: é como se o contribuinte caísse no triângulo das bermudas da famigerada malha fina. Flutuações incomuns de patrimônio também podem ser um chamariz para a abertura de fiscalizações.

Por último, a pergunta de um milhão de dólares: como evitar as Fiscalizações Tributárias? A resposta é simples: com boa Gestão Tributária. Não existe fórmula mágica, mas sim uma verdade absoluta: podemos evitar, mas não impedir a ocorrência de Fiscalizações.

E você, dará um fim digno para seus peixes?

(1) Trecho extraído do livro A mulher que matou os peixes de Clarice Lispector. Fonte: https://cdn.culturagenial.com/arquivos/a-mulher-que-matou-os-peixes-clarice-lispector.pdf

(2) Nasceu em 15 de outubro de 1926. Professor, Filósofo, Psicólogo e escritor francês, influenciado por Nietzsche, Marx e Freud.

(3) Súmula 439 do STF. Aprovação: 01/10/1964. Enunciado: Estão sujeitos à fiscalização tributária ou previdenciária quaisquer livros comerciais, limitado o exame aos pontos objeto da investigação.

Dra. Vanessa Ruffa Rodrigues

Gerente da Consultoria Tributária/Terceiro Setor na Meira Fernandes Contabilidade Educacional. Docente na Escola Superior de Advocacia de São Paulo (ESA-SP), na Escola Aberta do Terceiro Setor a na SGP – Soluções em Gestão Pública. Vice-Presidente da Comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB de Pinheiros/SP. Membro Efetivo da Comissão de Contencioso Tributário da OAB/SP. Palestrante na OAB/SP, na OAB/PA e na ALESP (ILP). Coordenadora de Atualização Legislativa da Comissão de Direito do Terceiro setor da OAB/SP (2013 - 2018). Graduada em Direito (FMU). Especialista em Direito Tributário (Mackenzie). Extensão em Direito Tributário e Societário (FGV). Extensão em Tributação do Setor Comercial (FGV). MBA em Gestão de Tributos e Planejamento Tributário (FGV). Compliance Digital (Mackenzie).

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